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QUEM SÃO OS POVOS ESLAVOS?
O maior obstáculo para o estudioso brasileiro em História e Religião eslavas é a escassez, não só de fontes primárias, mas mesmo de pequenas introduções, manuais e revisões em língua portuguesa, castelhana ou inglesa. Isto me leva a concluir que o significado de minha obra, a tradução e organização do Livro de Veles, é tão maior quanto mais vasta for esta negligência latino-americana a respeito de tão formidável cultura, cujas raízes, ramificações e frutos estão a certa distância de serem coerentemente apreciados em seu real valor para a civilização enquanto totalidade. O mesmo não ocorre em línguas eslavas, porém. A riqueza de livros publicados e de pesquisadores especialistas em historiografia e espiritualidade eslavas é espantosa em países como Ucrânia e Rússia. Este artigo é um recorte de minha pesquisa central sobre História e Religião eslavas, e pode ser lido integralmente em minha edição do Livro de Veles à venda em meu site e através da Editora Multifoco do Rio de Janeiro.
A INTRODUÇÃO À QUESTÃO ESLAVA
A questão da origem eslava, seu solo originário, sua linguagem e sistema de escrita, sua influência étnica nos demais povos e vida cultural anteriores à cristianização, irrompe ora em controvérsia científica, ora em polêmica política, submergindo tanto o intelectual quanto o leigo, famintos por conhecimento imparcial ou desenvolvimento pessoal, num lago tartárico rodeado de belas iguarias que recuam quando se lhes estendem as mãos – um genuíno suplício de Tântalo.
Esta dificuldade, entretanto, obriga-me a uma curiosa imersão em textos de idiomas eslávicos e permite uma proximidade e, consequentemente, uma genuinidade maior desta tradução e pesquisa com relação não apenas ao idioma em sua estrutura formal, mas à riqueza imagética e espiritual da linguagem algo rústica empregada no Livro de Veles.
ESPIRITUALIDADE, NÃO MERA MITOLOGIA
Substituir termos depreciativos que sugerem extravagância e afetação como mitologia e paganismo, ou os jocosos fábula e folclore, milenarmente presentes na literatura universal quando se trata de religiões indo-europeias, por espiritualidade ou fé, não apenas é um modo de prevenir concepções hegemônicas e deterministas em questões religiosas, mas de atestar clareza conceitual quanto ao uso destas terminologias e, sobretudo, exprimir uma lucidez etnocultural só possível com alguma consciência historiológica comparativa. Afinal, a religião, doutrina ou ordem viva e entusiástica de hoje torna-se a mitologia ou culto morto e repugnado de amanhã. Me parece razoável concordar com Ernst Cassirer [1] quando esclarece o eidos da religião e da mitologia de forma a torná-los não apenas semelhantes, mas dependentes: “Em todo o curso de sua história, a religião permanece indissoluvelmente ligada a elementos míticos, e impregnada deles [2]”. Não foram afinal, como analisou Rudolf Otto em sua monografia clássica [3], o numinoso, o mysterium tremendum que promove o terror místico, e o sentimento humilde de criatura e da majestade do Sagrado, todos envoltos sob o manto do maravilhoso irracional, igualmente vivido por todos os povos nos seus respectivos instantes de florescimento? A unidade de sentimento entre o indivíduo, o outro, a comunidade, a natureza e os deuses, é, não apenas a chave explicativa para estudiosos dos sistemas religiosos e mitológicos, mas uma declaração universal do direito a ser de todas as fés que se nutrem destes elementos nativos, autônomos e singulares.
QUEM SÃO OS ESLAVOS?
Segundo definições enciclopédicas e dicionarísticas gerais, a denominação “eslava” aplica-se ao mais numeroso corpo étnico e linguístico de povos indo-europeus que inicialmente se fixaram nas porções central e oriental da Europa [4]. Nosso ilustre homem de letras sul-rio-grandense Tassilo O. Spalding, autor de traduções clássicas e dicionários mitológicos, deu-nos uma daquelas raras contribuições eslavistas em nosso idioma, ainda que sintética e objetiva em demasia – meras doze páginas de um dicionário [5] –, bem simbolizando o quadro de obscurantismo susocitado. Spalding reafirma a origem indo-europeia e, como muitos, a equivale à hipótese da migração ariana do Terceiro milênio AEC – nomenclatura coerente que, isenta de histerismos, remete aos Vedas para designar distinção e nobreza não apenas em relação à população aborígene instalada próxima ao rio Indo, mas de acordo com a arqueologia e novas pesquisas genéticas, às atuais populações centro-asiáticas e europeias em geral, uma vez que neste período os indo-europeus ou arianos se assentaram nas estepes russas e planaltos iranianos [6]. Em se tratando mais especificamente da questão eslava, Spalding indica uma divisão geográfica e linguística em três grandes grupos eslávicos, divisão esta que aprimoro com dados atualizados da Encyclopædia Britannica [7]: 1) eslavos orientais ou do Leste: russos, ucranianos, bielorrussos e rutênios; 2) meridionais ou do Sul: búlgaros e húngaros, croatas, macedônios, eslovenos, sérvios, montenegrinos e bósnios; e 3) ocidentais: poloneses, tchecos, eslovacos, morávios, silesianos, sorábios e parte dos bálticos e romenos. Em termos de religiosidade cristã, tradicionalmente se dividiram em dois grupos dominantes: um ligado à Igreja Ortodoxa Oriental composto de maioria russa, ucraniana, búlgara, sérvia e macedônia, quais se utilizam do alfabeto cirílico; e outro associado à Igreja Católica Romana, entre poloneses, tchecos, eslovacos, eslovenos e croatas que fazem uso do alfabeto romano.
Os registros históricos sobre estes povos começam no sexto século de nossa Era. Sua história é marcada por agudas dissensões e conflitos entre Estados. A invasão turcomana e mongol nos territórios balcânicos e russos contribuiu para o seu alheamento ao desenvolvimento político, econômico e cultural europeu, além de fortalecer políticas militares e prolongar sistemas medievais como o servilismo [8]. No século XIX, após as guerras napoleônicas, surgem em vários países movimentos pan-eslávicos diversificados, cujos frutos, malgrado o desaparecimento progressivo de sua dimensão política, atualmente podem ser recolhidos em um sentimento geral de fraternidade cada vez menos filantrópico e cosmopolita. Isto significa que não se trata mais de uma acepção meramente ideológica. À medida que avançam pesquisas científicas das mais intrépidas e demais ensaios, traduções e criações literárias que também não dispensam coragem e tenacidade, dá-se lugar a noções como fé nativa, pátria comum e unidade étnico-racial que, como resposta à principal crítica dessa perspectiva, alcançam regiões muito mais vastas, vindouras e autênticas que qualquer cartaz partidário revolucionário ou contrato burguês de cooperação econômica que possam nascer de organizações mundiais públicas ou privadas – independentemente das cores de suas bandeiras, do tamanho de seus ídolos de plástico e da arrojada fraseologia encomendada por seus contratantes invisíveis. Nada mais belo que a comunhão entre as nações quando cada povo reconhece o que lhe pertence: sua identidade, origem e sentido comum.
O QUE “ESLAVO” SIGNIFICA?
O próprio etnônimo foi alvo de longo debate. As três origens e significados em disputa, segundo o historiador Dr. Philip Lozinski [9], especialista em história e arte eslava, foram: as formas eslávicas slovo que significa “palavra” e slava “glória, fama”, e o latino sclavus “escravo”. Em resumo, o primeiro é demasiado limitado e quase ilógico enquanto autodenominação; o terceiro é uma depreciação greco-bizantina tardia; e o segundo, porém, além de corresponder exatamente ao nome pelo qual os próprios eslavos se chamaram, possui evidente conotação espiritual ao designar, simultaneamente, “glorificador” e “glorioso”. Às palavras do Prof. Lozinski: “A explicação do nome dos eslavos como ‘adoradores’ se encaixa no padrão cultural e sociológico da história eslava primitiva. Além disso, está em perfeita concordância com certos aspectos significativos de sua história e amplia o escopo de nossa abordagem do problema da história e das origens eslavas” [10].
DA ESPIRITUALIDADE ESLAVA PRÉ-CRISTÃ
Outra contribuição propedêutica nos foi dada por Waldomiro O. Piazza, intelectual cristão de espírito sintético, que em seu popular Religiões da Humanidade [11] dedicou algumas páginas à mitologia eslava, organizando-a em dois núcleos eslávicos a partir das fontes documentais legitimadas disponíveis, todas escritas por cronistas cristãos que não raro limitavam-se a demonizar seu objeto de observação. Os primeiros são os eslavos da Rússia que, a partir da célebre Crônica de Nestor ou Crônica dos Anos Passados, no início do século X, já sob o governo cristão de Vladimir I de Kiev, afirma-se que cultuavam a Perun, deus guerreiro dos trovões, e Veles, deus pastor e patrono dos rebanhos, em ídolos de madeira. O próprio Vladimir I, ao iniciar seu reinado, teria erguido vários desses ídolos em uma colina fora dos muros da capital, destacando-se além daqueles dois, os de Hors, deus solar e da medicina, Stribog, deus dos ventos e tempestades, Simargl, deus canino do fogo, Mokosh, deusa da colheita e tecelagem e, mais tarde, um ídolo de Svarog, deus ferreiro celestial. Nos sermões dos monges descritos na Crônica, citam-se ainda várias divindades e espíritos das águas, bosques e campos. Ao que tudo indica, a princípio, Vladimir tentou conciliar esta antiga religião com o cristianismo, em vão. O segundo núcleo religioso nos remete aos eslavos do Báltico, e conforme faz notar o padre Piazza, as fontes documentais e arqueológicas são muito mais ricas e detalhadas precisamente porque os povos bálticos resistiram por mais tempo ao cristianismo, isto é, até finais do século XIII. Algumas das fontes são a Crônica de Thiemar, Saga Knythlinga, Atos dos Bispos da Igreja de Hamburgo e outras tidas por menores. Elas indicam que havia dois centros de maior importância religiosa: Riedegost, uma antiga cidade no atual norte alemão em que se situava um grande templo em madeira repleto de imagens de Svarozich, uma variação do ferreiro Svarog; e Arkona, na atual Rúgia, uma ilha alemã do mar Báltico, em que também havia um santuário com vários deuses entalhados e pintados, com destaque aqui para os policéfalos Sventovit, que realizava oráculos, e o misterioso Triglav. Indo um pouco mais além, vestígios arquitetônicos indicam que na cordilheira Свwiętokrzyskie no sul polonês houve um grande santuário no século VIII dedicado ao Sol, destacando-se ali vários símbolos solares, bem como vários templos menores com muralhas arredondadas no distrito de Łysa Góra.
O famoso ídolo de Zbruch, na Ucrânia, hoje em exibição no Museu Arqueológico de Cracóvia, e comumente associado ao divino Sventovit, indica uma grande cidade-templo que reunia diversos clãs e tribos eslavas. De modo geral, os eslavos dividiam similaridades com as religiões celta e germânica: culto ao fogo, às forças da natureza, ao Sol e aos antepassados – e este intimamente ligado com a ideia de fertilidade da terra, de ciclo eterno e de renascimento. Há relatos de que cultuaram um Ser Supremo, supondo um sistema religioso henoteísta. Algumas peculiaridades eslávicas eram a importância do culto ao cavalo, a riqueza dos templos que recebiam um terço dos espólios de guerra e a importância dos sacerdotes frente ao clã por serem os intérpretes do destino humano. Acreditavam os eslavos de ambos os núcleos espirituais num tipo de vida espiritual após a morte física. Atribuíam um senso de dignidade peculiar ao homem, que por sua vez, meio a todos os seres vivos e abaixo dos deuses, detém o seu lugar próprio.
É digno de nota mencionar que, segundo Coulanges [12], clássico absoluto em historiografia antiga, todos estes elementos, clara e constantemente presentes no Livro de Veles, se enquadram perfeitamente no conjunto das religiões arianas que se fundamentam em duas bases cultuais: o culto aos mortos e o culto ao fogo. Do primeiro deriva o eterno laço de sangue que une as cadeias geracionais e dá o poder sacerdotal ao pater, o pai e sumo-sacerdote doméstico, como também o apaziguamento das almas que, ao contrário das religiões posteriores, não transmigravam nem subiam aos céus, mas ficavam junto da terra, conferindo a esta um caráter sagrado jamais antes visto e incumbindo a família de zelar pelos seus mortos, que logo se elevavam à categoria de divindades do lar e protetores dos descendentes: “A religião não residia nos templos, mas na casa [...] Ela nasceu espontaneamente no espírito humano” [13]. Do segundo deduz-se origens ainda mais remotas que o culto de Brahman ou de Indra que remetem ao culto de Agni, no Livro de Veles correspondente a Ognebog, igualmente cultuado como uma lareira sagrada que preside refeições, orações e assembleias, dando quiçá origem aos famosos cultos solares que percorreram o globo desde tempos imemoriais, aqui eventualmente citados como uma díade divina, Simargl-Ognebog.
Com muita sabedoria, Coulanges conclui que ambos os cultos são, no fundo, um só. Sob o fogo da lareira repousava um antepassado, e manter o fogo sempre aceso e puro era conservar a presença vivificante do ancestral – daí originando a antiga representação da alma como uma chama viva, ideia sintetizada, por exemplo, no Geist do alemão ou em metáforas recuadas como “chama da vida”. Ver-se-á, inclusive, muitos exemplares desta identificação entre o sol, o fogo, o espírito e a vida em trechos do Antigo Testamento, como o aparecimento de Javé em chamas qual “fogo consumidor” (Ex 24:17) e o fogo no altar aceso pela estirpe de Arão (Lv 1:7) escritos entre os séculos VII e VI AEC, e também no Novo Testamento, como o batismo pelo fogo prenunciado por João Batista referindo-se a Jesus (Mt 3:11, Lc 3:15), escrito no primeiro século de nossa era.
A religião do fogo sagrado data, pois, da época distante e misteriosa quando ainda não havia gregos, nem italianos, nem hindus, só árias. Quando as tribos se separaram umas das outras, transportaram esse culto consigo, umas para as margens do Ganges, outras para as praias do Mediterrâneo. Mais tarde, entre essas tribos separadas e já sem relações entre si, umas adoraram Brahma, outras Zeus, outras Janus; cada grupo criou seus próprios deuses. Mas todos conservaram como um antigo legado a religião primeira que haviam concebido e praticado no berço comum de sua raça [14].
Cento e cinquenta anos nos separam desta magistral lição de Coulanges, e pudemos alargar ainda mais suas implicações. Estas crenças naturais tão fascinantes quanto autênticas foram encontradas não apenas no Mediterrâneo e na península indiana há milênios, mas no Egito, nas estepes pérsico-iranianas, na península itálica, na Gália, Bretanha e Germânia bárbaras, na Escandinávia e, segundo autores consagrados em meios polemistas, chegaram às Américas ainda antes das grandes navegações, cujos testemunhos variam entre fontes literárias, achados arqueológicos e coincidências gramaticais das mais desconcertantes. O Livro de Veles é mais um pilar a somar a este santuário do renascimento espiritual para todos os que atualmente compartilham, com o calor de seus corações em sincronia, o laço sagrado de história e ancestralidade em comum.
Notas
[1] CASSIRER, E. Ensaio sobre o homem: introdução a uma filosofia da cultura humana. Trad. Tomas R. Bueno. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
[2] Op. cit., p. 146.
[3] OTTO, Rudolf. O sagrado: os aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o racional. Trad. J. Gama. Lisboa: Edições 70, 1992.
[4] SOWARDS, S. W. Internet Archive. Twenty-five lectures on modern balkan history: Lecture 1: geography and ethnic geography of the Balkans to 1500. Michigan: Michigan State University Libraries, 2008. Disponível em: <http://staff.lib.msu.edu/sowards/balkan/lecture1.html>. Acesso em: 17 nov. 2019.
[5] SPALDING, T. O. Dicionário das mitologias européias e orientais. São Paulo: Cultrix, 1975.
[6] Este tópico será retomado mais adiante com mais detalhes. Cf. JOSEPH, T. The Hindu. How genetics is settling the Aryan migration debate. 2017. Disponível em: <thehindu.com/sci-tech/Science/how-genetics-is-settling-the-aryan-migration-debate/article19090301.ece>. Acesso em: 17 nov. 2019; e FREITAS, A. C. Público.pt. Estudo genético comprova migração para a Índia há cinco mil anos e instala a polémica. 2017. Disponível em: <www.publico.pt/2017/08/23/ciencia/noticia/estudo-genetico-comprova-migracao-para-a-india-ha-cinco-mil-anos-e-instala-a-polemica/1783033/amp>. Acesso em: 17 nov. 2019.
[7] ENCYCLOPÆDIA BRITANNICA. Slav. 21 out. 2019. Disponível em: <britannica.com/topic/Slav>. Acesso em: 18 nov. 2019.
[8] Idem.
[9] LOZINSKI, B. P. The name SLAV. In: _____. Essays in Russian history. Hamden: Archon Books, 1964. pp. 19-30.
[10] Op. cit., p. 30. Tradução livre.
[11] PIAZZA, W. O. Religiões da humanidade. São Paulo: Loyola, 1991.
[12] COULANGES, Fustel de. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito e as instituições da Grécia e de Roma. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.
[13] Op. cit. p. 47.
[14] Op. cit. p. 38.
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