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PARA UMA ESTÉTICA DO BLACK METAL: UM ENSAIO EM FILOSOFIA DA ARTE [1]

“A arte só pode ser tão bem servida por um pensamento negativo. Seus procedimentos obscuros e humilhados são tão necessários à inteligência de uma grande obra quanto o preto o é para o branco”.
— Albert Camus, “O Mito de Sísifo”, 1941.


Este ensaio exploratório pretende, a partir da compreensão do potencial völkisch e romântico do estilo e gênero musical Black Metal, lançar luz a uma perspectiva estética fundamentada em pesquisa bibliográfica sobre o problema conceitual da arte, alvo de debates em Filosofia da Arte desde os gregos clássicos. Este estudo pôde aproximar diferentes perspectivas de um mesmo fenômeno subcultural e sugerir horizontes de exploração filosófica futura com o fim de constituir-se enquanto breve tentativa de apreciação teórica. Damos por aberto uma das grandes questões do campo das concepções filosóficas: o que é arte? O que é ou como definir o belo? Este estudo, dada sua limitação intelectual itinerante, não pretende silenciar a questão, mas aproximar a concepção romântica do mundo do Black Metal enquanto movimento contemporâneo, cujo vasto campo de produção artística e direcionamentos aparenta já encaminhar-se para este modo de pensar, sentir e viver [2],[3],[4].


Adentrar em tal monumental e complexo problema de ordem filosófica é, utilizando-se de uma alegoria, no sentindo de allo agoreuei, um outro-dizer, como penetrar um campo de batalha, cujos lanceiros jazem às pilhas, os arqueiros recorrem às espadas, e os espadachins não mais se defendem das investidas à linha de frente. As lanças se partiram, as flechas se esgotaram e os escudos de bronze repousam, destroçados, sobre a relva. Qual aprendiz cujo elmo ainda não lhe encaixa bem à fronte e o medo parece lhe pesar mais que a própria lâmina, pretendemos empunhar, nesta luta, um criticismo próprio. Esta postura investigativa não é uma relíquia forjada do ferro, mas do logos, do desvelar dialético da realidade como verdade originária [5].


O ESPÍRITO ROMÂNTICO DO BLACK METAL


 O Black Metal ou “Metal Negro” é uma vertente musical extrema do Heavy Metal que surgiu na década de 1980 nos países escandinavos, que por sua vez se deriva dum gênero maior, o Rock and Roll, desenvolvido nos anos finais da década de 1960, em sua maior parte, na Inglaterra e Estados Unidos [6]. Quanto à estrutura musical, a estilística no Black Metal consiste em uma sonoridade pesada, veloz e crua, podendo contar, conforme é próprio de sua variabilidade étnica, temática e ideológica, com emulações de corais; orquestras e efeitos sonoros de sintetizadores; extrema distorção nas guitarras; gutural e vociferação nos vocais; e blast beats [7] na percussão, que elaboram composições lo-fi [8] não convencionais [9],[10]. Quanto à temática lírica, volta-se para contextualizações de diferentes espiritualidades, como também atenta-se para o nacionalismo, o naturalismo e, em seus últimos anos revela suas bases mais essenciais ao assumir, ainda que não raro de modo indireto, uma postura evidentemente romântica e melancólica [11]. Esta ética melancólica é expressa por S. Wilson em seu conceito-chave melancology: “The melancholic attitude of this ethic is in turn supported by an aesthetic form that is invigorated by its preservation of ‘the dark, depressive quality of live in the shadow of ecological catastrophe’” [12].


A cosmovisão contemporânea que o estilo Black Metal assume, ressaltando ainda suas preocupações líricas de cunho belicoso, melancólico e fantástico, remonta a um novo conservadorismo que faz remeter à reforma conservadora alemã ocorrida durante a passagem para o séc. XX, dirigindo-se especialmente aos seus ideais, característicos de um movimento völkisch, “popular”, “nacional”. Logo, a postura deste movimento inicialmente de cunho musical encontrar-se-á, no decorrer das décadas de 1990 e 2000, munido de uma preocupação étnica e nacional cuja contraposição à valorização da razão científica, a urbanização e a encarnação prática do modelo industrial-capitalista são reassumidos com novo vigor [13],[14],[15]. Alex Kurtagic traz contribuições para a compreensão do pensamento conservador e romântico do Black Metal ao reviver o ideal völkisch:


“O pensamento völkisch é caracterizado por um foco romântico no ‘orgânico’; folclore germânico, história local, sangue e solo, e misticismo natural. O termo deriva da palavra alemã Volk, que corresponde a ‘povo’, mas com as conotações adicionais de folclore, raça, e nação. Entre os românticos alemães, ‘Volk’ significava a união de um grupo de pessoas com uma essência transcendental, a fusão do homem com a natureza [...], com o mito, ou com o cosmo, onde o homem encontra a fonte de sua criatividade, sua profundidade de sentimento, sua individualidade, e sua unidade com outros membros do Volk. Um conceito relacionado é Volkstum, um termo que combina as noções de folclore e etnicidade." [16]


Ainda tratando-se desse pensamento, aponta que ele é responsável pela total rejeição germânica à sociedade industrial e à modernidade, “[...] que veio a ser vista como materialista, desalmada, desenraizada, abstrata, mecânica, alienante, cosmopolita, e irreconciliável com a auto-identificação nacional” [17], e historicamente mais adiante, acaba por adotar práticas e estudos esotéricos, vinculando-se fortemente ao que se entende por Black Metal na atualidade da década de 2010. O retorno ao movimento völkisch pelas mãos deste gênero musical obscuro se dá, segundo Kutargic pelo enfraquecimento do cristianismo após os anos 60, que passava por uma


“[...] fase de decadência no Ocidente, após um longo período de crescente ceticismo bem como hostilidade de ideologias políticas tanto da Direita como da Esquerda. Como tem sido o padrão no Ocidente desde o quarto século, o declínio da religião dominante coincidiu com um interesse renovado em espiritualidades alternativas, religiões exóticas, e em ocultismo [18].”


O elo entre essa procura da massa pelas práticas espirituais alternativas e o movimento citado, é constituído pela cultura musical popular moderna já em fase de crescimento no início dos anos 70. Cultura popular esta que mais tarde veio a tornar-se o primórdio do próprio Heavy Metal [19],[20].


As características do movimento romântico do séc. XIX são evidentes e podem ser destacadas no mais enegrecido dos subgêneros do Metal [21]. Esta crença numa essência humana passional e sensível foi uma contraposição ao posicionamento racionalista desde Descartes. O Romantismo alemão surgiu em primeira instância com o nome Sturm and Drang, “Tempestade e Ímpeto”, chamando à tona a supremacia da força da natureza que era “[...] em muito superior à consciência ou do homem como um todo. A valorização da natureza opõe-se, como algo mais original e verdadeiro, à civilização com suas regras, seus métodos e sua etiqueta” [22]. Torna-se claro o desafio que é abarcar definições para este espectro cultural multifacetado a partir do enunciado do pesquisador J. Lima de que ele seja, “[...] talvez o movimento cultural mais difícil de ser apreendido e captado em sua forma substancial”. [23]


A tentativa de delinear a ideia principal do Romantismo de Figueiredo & Santi merece destaque por sua simplicidade e objetividade, pois torna clara uma caracterização que poderia confundir-se com o cerne próprio da estilística Black Metal. Os autores arriscam dizer que este pensamento parece que “[...] regularmente representa uma crítica à modernidade e uma nostalgia de um estado anterior perdido” [24]. A centralidade das emoções, uma nova sensibilidade poética, uma aproximação mística da natureza, a revolta com os modelos estéticos acadêmicos instaurados, a preferência pelo primevo e uma “[...] oscilação entre a tristeza melancólica e o protesto revolucionário”, como observa Lima [25], bem como o próprio conceito de dämonisch [26] cunhado por Goethe (1749-1832) que propõe o impulso irracional dos homens prometeicos – podem, junto a outras características, tornar visíveis as semelhanças entre a perspectiva völkisch romântica e o movimento cultural Black Metal [27]. É em Goethe, inclusive, que veremos as primícias psicológicas do que se tornaria um poder filosófico irresistível para os séculos XIX e XX:


“Quando vejo os limites que aprisionam a capacidade humana de ação e pesquisa; quando vejo que toda a atividade se esgota na satisfação de necessidades, cujo único propósito é prolongar a nossa pobre existência e, ainda, que toda a tranquilidade em relação a certas questões não passa de uma resignação sonhadora, pois as paredes que nos aprisionam estão cobertas de formas coloridas e perspectivas luminosas – isso tudo, […], me deixa mudo. Volto-me para dentro de mim mesmo e encontro um mundo! Mais pressentimentos e desejos do que de raciocínios e forças vitais. E, então, tudo paira a minha volta, sorrio e sigo a sonhar, penetrando adiante no universo”. [28]


O Black Metal enquanto provável releitura do sentimento völkisch, vem firmar um romantismo ampliado e renascido, buscando de forma natural em cada país em que é instaurado religar seus integrantes com seu próprio völkisch num sentido romântico e quase transcendental.


SALTO NO ABISMO: O PROBLEMA CONCEITUAL


 Etimologicamente, a palavra Arte provém do latim ars “arte, técnica” [29], intrinsecamente relacionada ao grego tekhné “técnica, relativo ao trabalho do artesão” – tanto que, por séculos foram concebidas como sinônimas pelos romanos [30].


Na Ética a Nicômaco de Aristóteles [31], o fim da ação técnica, assim como de toda ação e escolha humana, é o bem comum, ou seja, aquilo a que todas as coisas tendem. Seu emprego para a arte é o do bem-fazer, conforme cita em alguns exemplos: a arte médica, a arte da selaria, a arte musical, a arte política, a arte da navegação e etc. Na Poética, as premissas iniciais clarificam a categoria geral de mimesis, ou mimese, a que todos os gêneros da poética pertencem, ou seja, todas as artes liberais, uma vez considerando que a poética é compreendida como arte superior no período helênico. A mimesis pode ser entendida como figuração ou representação, embora seus meios, objetos e modos se difiram. Ainda na discussão dos gêneros poéticos, partindo de estudos do teatro grego, Aristóteles encontra o gênero fundamental das artes: a tragoidía ou tragédia, que significava, do grego, “canto do bode”, referindo-se tanto ao sacrifício de um bode nas festas de Dioniso, quanto aos dramas heroicos. É na tragédia, conforme Aristóteles, que se opera a kátharsis, ou catarse, designando assim, a “purificação ou expurgo” de sentimentos de piedade, terror e infelicidade [32].


Recorrendo-se aos verbetes do Dicionário de Filosofia de Cambridge [33], observa-se que o de título Estética também corresponde a Filosofia da Arte. E a isto se deve um corpo de questionamentos provocativos:


“A questão mais importante da filosofia da arte tem sido a de como definir ‘arte’. Nem todas as culturas têm, ou tiveram, um conceito de arte que coincide com aquele que surgiu na Europa Ocidental durante os séculos 17 e 18. O que justifica o fato de aplicarmos este nosso conceito às coisas que as pessoas produziram nestas outras culturas? Existem também alguns quadros (inclusive pinturas), canções, construções e fragmentos de escritos, que não são arte. O que é que distingue estes quadros, estas obras musicais etc., que são arte, daquelas outras que não o são? [34].”


O problema conceptual com que este artigo se defronta pretende oferecer perspectivas para este quadro de questões em Filosofia da Arte sem esgotar suas possibilidades. As interrogações de Audi et al de Cambridge são incisivas, e podem ser complementadas com as discussões de Jean Lacoste, filósofo parisiense que tem por preocupação justamente este salto conceitual. O autor oferece uma condição histórica para a ideia de arte, apresentando-a como equívoca: “Primitiva, exótica, popular, "gótica", "rudimentar", ingênua, a própria arte encarrega-se de fazer explodir, no tempo e no espaço, toda e qualquer definição canônica do belo, que cada ampliação do "museu imaginário" faz surgir como um preconceito. [35]


O autor revela as artes liberais, como a poesia, e as mecânicas, como a pintura, como as duas correntes artísticas possíveis na Idade Média, bem como também retoma a superação deste patamar por parte dos italianos no séc. XIV que reivindicavam o status de arte liberal para a pintura, igualando-a a poesia. Após Hegel (1770-1831), já na modernidade, o pintor e o poeta parecem formular uma nova estética


“[...] que vê na obra de arte não mais uma imitação da beleza da natureza, mas a expressão de uma emoção individual, de um sentimento, de uma impressão ou a tradução silenciosa do imaginário. Em outras palavras, é a libertação do artista como indivíduo, que pensa e pinta para si mesmo, o que Malraux, que percebe essa libertação sobretudo em Manet e Van Gogh, resumirá dizendo que ‘à representação do mundo sucede sua anexação’. [36]


Esta expressão singular, sinônimo de liberdade ao homem artista, deve interessar ao problema conceptual proposto. É provável que o enunciado de Nietzsche (1844- 1900) de que a arte é a possibilitadora da própria vida, e assim a anuncia como “[...] a redenção do que sofre – como via de acesso a estados onde o sofrimento é querido, transfigurado, divinizado, onde o sofrimento é uma forma de grande delícia” [37], seja assumidamente relevante para seu entendimento e aproximação da estilística contemporânea dum modo geral. A sucessão da anexação da representação do mundo, a verdade estética de Nietzsche e a participação do Black Metal nesta expressão individual de liberdade é uma conjuntura peculiar alcançada pela argumentação desta pesquisa.


Em Will Gompertz, ex-diretor do museu inglês Tate Gallery e editor de artes da BBC, encontramos uma reconstrução histórica dos fundamentos da Arte Moderna desde seu surgimento dentre os pré-impressionistas parisienses [38]. Conjuntamente a Gompertz, o ensaio do francês Marcel Duchamp (1887-1968) publicado por Pedro França (Orgs.), intitulado A nova arte [39], é utilizado para apresentação de um horizonte estético, pensado por Duchamp, que postula posicionamentos pertinentes à filosofia estética do Black Metal, florescido de uma revitalização trágico-romântica na contemporaneidade. O ato revolucionário de Duchamp, segundo o artista, referindo-se a criação de seu readymade [40] por meio de um mictório desejava questionar a “[...] própria noção do que constituía uma obra de arte tal como decretada por acadêmicos e críticos, que via como os árbitros autoescolhidos e em geral não qualificados do gosto. Cabia aos artistas decidir o que era ou não uma obra de arte. [41]


Logo, torna-se clara sua perspectiva para o problema concreto da obra de arte, significativo para a presente discussão conceitual: se um artista infere em um objeto quanto ao seu contexto e significado afirmando que se trata de uma obra, de fato, artística, ela o é. Uma questão deve ser considerada: seria esta uma alternativa possível para o problema da arte? Às palavras de Duchamp na coleção de entrevistas Engenheiro do tempo perdido:


“A palavra ‘arte’ interessa-me muito. Se ela vem do sânscrito, como ouvi dizer, significa ‘fazer’. Ora toda a gente faz alguma coisa, e aqueles que fazem coisas sobre uma tela, com uma moldura, são chamados artistas. Antigamente, eram nomeados por uma palavra que eu prefiro: artesãos. Somos todos artesãos na vida civil, na vida militar e na vida artística. [...] A palavra ‘artista’ foi inventada quando o pintor se transformou num personagem [...]”.[42]


Outra faceta que merece atenção nesta problemática é o papel do artista na sociedade moderna. O primor pela habilidade técnica e a perfeita cópia – ou seja, a melhor imitação possível –, valores comuns na indústria cultural de massa para julgamento das obras de arte, conforme pensaram T. Adorno (1903-1969) e M. Horkheimer (1895-1973) em Iluminismo como mistificação das massas, parecem não ser suficientes para justificar o papel do artista contemporâneo, muitas vezes hipócrita e ordinário [43]. E a este novo problema transcreve-se uma exequível alternativa a partir dos propósitos da visão vanguardista de Duchamp: "A seu ver, o papel de um artista na sociedade era semelhante ao de um filósofo; não importava sequer se ele sabia pintar ou desenhar. O trabalho de um artista não era proporcionar prazer estético – designers podiam fazer isso –, mas afastar-se do mundo e tentar compreendê-lo ou comentá-lo por meio da apresentação de ideias sem nenhum propósito funcional além de si mesmas [44]."

Eis que surge um esboço do que viria a se tornar a arte conceitual, cuja primazia é pelo conceito, as ideias sobre as quais se fala, e não pelo belo convencionado a ser admirado por seu potencial mimético ou figurativamente fidedigno. A figura a seguir é a ilustração da capa do álbum Fri da banda de Black Metal dinamarquesa Make a Change... Kill Yourself formada por Jakob Zagrobelny e Nattetale, que exemplifica com nitidez o ponto-chave conceitualista: a ascensão da ideia e o desprezo pelo belo convencional.


Ainda quanto a centralidade da ideia em detrimento do academicismo, Duchamp argumentava que o meio sempre ditou a forma como o artista deveria compor sua obra, seja esta numa tela, mármore, madeira ou pedra, e tal paradigma deveria mudar, ou ainda, se inverter: o meio deveria ser secundário, pois o primordial era a ideia em si. Conforme Gompertz:


“Só depois de ter escolhido e desenvolvido um conceito o artista estava em condições de escolher um meio, e o meio deveria ser aquele que permitisse expressar a ideia da maneira mais bem-sucedida. E se isso significasse usar um mictório de porcelana, que fosse. Em essência, arte podia ser qualquer coisa desde que o artista dissesse que sim. Era uma grande ideia. [45]


A reconstrução de alguns pressupostos teleológicos da história da Arte até seu estado diversificado e conceitualista na contemporaneidade possui contribuições para a compreensão da estrutura estética na qual o Metal Negro se elaborou, muito embora este mesmo, isto é, seus representantes e integrantes, pareçam negar assumir tais débitos [46].


CONSIDERAÇÕES FINAIS


 Algumas comparações no exercício desta pesquisa exploratória bibliográfica urgem por serem semeadas enquanto potências reflexivas emergenciais interrogativas que tendem a formar um espírito cada vez mais crítico nos círculos do Metal Negro, pois evocam direcionamentos teóricos que superam, por seu rigor filosófico, as elaborações comerciais conceitualmente frágeis da corrente musical popular do Rock, um fruto inegável de demandas juvenis e de cultura de massa que pode vir a acolher uma nova abordagem e postura investigativa. Para tal empreendimento filosófico que reivindica novos horizontes para o Black Metal enquanto um fenômeno subcultural apresentar-se-á sete considerações que pretendem iluminar algo de sua base estética mediante uma aproximação com os movimentos romântico, völkisch e conceitual propostos no desenvolvimento desta pesquisa.


Por primeiro, a mimesis de Aristóteles não bem se aplica às temáticas românticas – líricas, fotográficas e indumentárias – do mais elementar Black Metal? O expurgo das emoções de terror e piedade pelas vias da representação da tragédia na poética do drama, a kátharsis, se observa às vociferações, choros lamuriosos e mesmo mutilações públicas presentes às dramatizações nos shows e nas sessões fotográficas neste diverso meio cultural.


A afirmação de Lacoste, em segundo lugar, de que a Arte pode ganhar adjetivações várias como primitiva, rudimentar ou exótica, e que se encarrega de destruir as definições convencionadas de beleza, bem se aplica às consequências no mundo artístico-musical atual causadas por este que parece ser o mais extremado dos gêneros musicais. Em terceiro, notamos que o Black Metal se enquadra às discussões filosóficas elaboradas quanto ao fato de instituir-se como arte de primor conceitualista no mundo contemporâneo.


Em quarto lugar, entendemos que as pinturas feitas por Kristian Eivind Espedal [47]; as composições minimalistas de René Wagner [48] e Varg Vikernes [49]; a leitura artística do cenário norueguês de Bjarne Melgaard em Until the Light Takes Us e a performance suicida realizada por Kjetil-Vidar Haraldstad [50]; o romantismo nórdico nos temas de Thomas Börje Forsberg [51]; o satanismo bruto e adogmático de Wagner Moura Lamounier [52] e Thomas Gabriel[53]; bem como numerosos outros exemplos em que se incluem também a prática do antagonismo pictórico do Corpse Paint [54], bem se aplicam a expressão de emoção individual ou tradução silenciosa do imaginário com vistas a “anexação do mundo”, tal qual já postulara o impressionismo de Claude Monet e o expressionismo de Van Gogh e Edvard Munch [55].


Como quinto elemento, consideramos que o argumento de Duchamp que desqualifica o juízo dos acadêmicos e críticos da arte em prol da supremacia do artista, se aplica à afronta que o Black Metal faz às culturas mundialistas dominantes e à autonomia com a qual avalia e categoriza suas próprias obras por meio de seus próprios critérios, bem como em sexto, o fato de que o papel do artista na sociedade contemporânea pode ser semelhante ao de um filósofo e eleva sua obra à figuração e compreensão do mundo por meio da apresentação de ideias, se observa no desprendimento explosivo do Metal Negro de quaisquer prazeres estéticos desprovidos da centralidade sentimental encontrada na nostalgia romântica.


E, finalmente, em sétimo, concluímos que a independência dos meios de criação da arte e a ideia de que ela “pode ser qualquer coisa” parafraseiam os incontáveis epítetos do gênero, que vão desde crítica estética a acusações políticas e religiosas, em especial provenientes do jornalismo mundial, classificando-o por contracultural, polêmico, ofensivo, intolerante, misantrópico; ou blasfemo, autodestrutivo, imoral, anticristão; ou xenofóbico, ultraconservador, radical; ou simplesmente por residual, insignificante, tribal, revoltado; títulos estes passíveis de significação igualmente múltipla [56],[57].


Notas


[1] Nota de esclarecimento: este texto foi originalmente publicado em 2010 no site Arte e Filosofia Black Metal como parte de uma série de ensaios liberais publicados sobre Black Metal, e convertido em artigo acadêmico em 2015 para publicação em periódico científico. Foi recusado, e o motivo apontado pelo corpo editorial foi que “o autor não possui formação na área de artes”. Recebe agora, portanto, nova adaptação para o grande público.


[2] LACOSTE, Jean. A filosofia da arte. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986.


[3] MARCONI, M. de A.; LAKATOS, E. M. Fundamentos de metodologia científica. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2003.


[4] MARQUES, Rozimeri Pereira et al. Arte e educação. Canoas: Universidade Luterana do Brasil, Editora IBPEX, 2008.


[5] HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. Trad. de Idalina Azevedo e Manuel Antônio de Castro. São Paulo: Edições 70, 2010.


[6] FERNANDES, José Lucas Cordeiro. Cruzes invertidas e corpos pintados: a permanência da figura de Lúcifer no Black Metal. História, imagem e narrativas, Ceará, n. 15, p. 1-35, out. 2012. Disponível em: <www.historiaimagem.com.br/edicao15outubro2012/blackmetal.pdf>. Acesso em: 07 abr. 2015.


[7] Também conhecido por metranca no Brasil, consiste em um padrão rítmico de bateria em que se faz uso de baquetadas rápidas que podem ser coincidentes ou alternadas na caixa e no chimbal. Cf. RUÍDO das minas. Direção: Filipe Sartoreto. Produção: Filipe Sartoreto; Gracielle Fonseca; Rafael Sette-Câmara. Belo Horizonte: UFMG, 2009. 1 DVD.


[8] Estilo de produção musical em que se utilizam técnicas de gravação de baixa fidelidade ou qualidade sonora. Cf. UNTIL the light takes us. Direção: Aaron Aites; Audrey Ewel. Produção: Aaron Aites; Audrey Ewel; Tyler Brodie; Gill Holland; Frederick Howard. Estados Unidos da América: Factory 25, 2010. 1 DVD.


[9] CAMPOY, L. C. O caminho da mão esquerda: o mal do Black Metal. 2008, 44 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Porto Seguro, 2008.


[10] UNTIL the light takes us. Direção: Aaron Aites; Audrey Ewel. Produção: Aaron Aites; Audrey Ewel; Tyler Brodie; Gill Holland; Frederick Howard. Estados Unidos da América: Factory 25, 2010. 1 DVD.


[11] FERNANDES, José Lucas Cordeiro. Cruzes invertidas e corpos pintados: a permanência da figura de Lúcifer no Black Metal. História, imagem e narrativas, Ceará, n. 15, p. 1-35, out. 2012. Disponível em: <www.historiaimagem.com.br/edicao15outubro2012/blackmetal.pdf>. Acesso em: 07 abr. 2015.


[12] “A atitude melancólica desta ética por sua vez é apoiada por uma forma estética que é revigorada pela sua preservação da ‘qualidade negra, depressiva de vida na sombra de uma catástrofe ecológica’” (tradução livre). WILSON, Scott. Melancology: Black Metal theory and ecology. Croydon: Zero Books, 2014. p. 11.


[13] FIGUEIREDO, L. C. M.; SANTI, P. L. R. Psicologia: uma (nova) introdução. 2. ed. São Paulo: EDUC, 2000.


[14] HISTÓRIA DO MUNDO. Germânica. Civilização Alemã – História da Alemanha. Disponibiliza conteúdos sobre a história das civilizações. 2015. Disponível em: <http://www.historiadomundo.com.br/germanica/civilizacao-germanica.htm>. Acesso em: 10 mai. 2015.


[15] NOVA CULTURAL. Os grandes artistas: vida, obra e inspiração dos maiores pintores. Enciclopédia. São Paulo: Nova Cultural, 1986. 4 vols.


[16] KURTAGIC, Alex. Legio-Victrix. Black Metal: revolução conservadora na cultura popular moderna. Apresenta conteúdos de metapolítica, história, filosofia e cultura dissidentes. 2011. Disponível em: <http://legio-victrix.blogspot.com.br/2011/12/black-metal-revolucao-conservadora-na.html>. Acesso em: 04 jan. 2015. p. 4.


[17] Ibid. p. 4.


[18] Ibid. p. 5.


[19] CAMPOY, L. C. O caminho da mão esquerda: o mal do Black Metal. 2008, 44 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Porto Seguro, 2008.


[20] NEDER, A. O estudo cultural da música popular brasileira: dois problemas e uma contribuição. Per musi, Belo Horizonte, n. 22, 2010, p. 181-195. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/pm/n22/n22a15.pdf>. Acesso em: 04 mai. 2015.


[21] WILSON, Scott. Melancology: Black Metal theory and ecology. Croydon: Zero Books, 2014.


[22] FIGUEIREDO, L. C. M.; SANTI, P. L. R. Psicologia: uma (nova) introdução. 2. ed. São Paulo: EDUC, 2000. p. 34.


[23] LIMA, J. R. N. O conceito de crítica de arte no romantismo alemão segundo Walter Benjamin. 2012, 58 f. Monografia (Bacharel em Comunicação Social) – Faculdade de Comunicação Social, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2012. p. 7.


[24] FIGUEIREDO, L. C. M.; SANTI, P. L. R. Psicologia: uma (nova) introdução. 2. ed. São Paulo: EDUC, 2000. p. 35.


[25] LIMA, J. R. N. O conceito de crítica de arte no romantismo alemão segundo Walter Benjamin. 2012, 58 f. Monografia (Bacharel em Comunicação Social) – Faculdade de Comunicação Social, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2012. p. 14.


[26] “Demonismo”, que denota uma confiança nos instintos. Cf. LIMA, J. R. N. O conceito de crítica de arte no romantismo alemão segundo Walter Benjamin. 2012, 58 f. Monografia (Bacharel em Comunicação Social) – Faculdade de Comunicação Social, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2012.


[27] LIMA, J. R. N. Op. cit.


[28] GOETHE, J. W. Os sofrimentos do jovem Werther. Porto Alegre: L&PM, 2013. p. 24.


[29] ORIGEM DA PALAVRA. Lista de Palavras. Arte. Sítio virtual de consulta etimológica. 2011a. Disponível em: <http://origemdapalavra.com.br/site/palavras/arte/>. Acesso em: 07 abr. 2015.


[30]           . Lista de Palavras. Técnica. Sítio virtual de consulta etimológica. 2011b. Disponível em: <http://origemdapalavra.com.br/site/palavras/tecnica/>. Acesso em: 07 abr. 2015.


[31] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco - Poética. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991.


[32] Ibid.


[33] AUDI, Robert et al. Dicionário de filosofia de Cambridge. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2006.


[34] Ibid. p. 292.


[35] LACOSTE, Jean. A filosofia da arte. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986. p. 7.


[36] Ibid. p. 4.


[37] NIETZSCHE, F. W. A arte em “o nascimento da tragédia”. In: NOVA CULTURAL. Nietzsche. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 28.


[38] GOMPERTZ, W. Isso é arte? 150 anos de arte moderna do impressionismo até hoje. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.


[39] FRANÇA, Pedro (Org.). Marcel Duchamp: o ato criador, sobre os readymades e o “caso R. Mutt”. 2009. Disponível em: <https://asno.files.wordpress.com/2009/06/duchamp.pdf>. Acesso em: 09 abr. 2015.


[40] “Pronto-feito” (tradução livre). Para Pedro França a ideia surgiu quando Duchamp “tomou um artigo comum da vida, o arranjou de forma a que seu significado utilitário desaparecesse sob um novo título e um novo ponto de vista – criou um novo pensamento para este objeto”. Cf. FRANÇA, Pedro (Org.). Marcel Duchamp: o ato criador, sobre os readymades e o “caso R. Mutt”. 2009. p. 4.


[41] GOMPERTZ, W. Isso é arte? 150 anos de arte moderna do impressionismo até hoje. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. p. 24.


[42] DUCHAMP, M. Engenheiro do tempo perdido: entrevistas com Pierre Cabanne. Lisboa: CRL, 1996. p. 22.


[43] ADORNO, Theodor W; HORKHEIMER, Max. O Iluminismo como mistificação das massas. In: ADORNO, Theodor W. Indústria cultural e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2009. p. 5-44.


[44] GOMPERTZ, W. Isso é arte? 150 anos de arte moderna do impressionismo até hoje. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. p. 25.


[45] Ibid. p. 24.


[46] CAMPOY, L. C. O caminho da mão esquerda: o mal do Black Metal. 2008, 44 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Porto Seguro, 2008.


[47] Apresenta-se pelo pseudônimo Gaahl, ex-integrante da banda Gorgoroth, atualmente integrante das bandas Trelldom, God Seed, Wardruna e outras. Cf. ENCYCLOPAEDIA METALLUM. Gorgoroth. Apresenta informações sobre bandas de Heavy Metal. 2015. Disponível em: <http://www.metal-archives.com/bands/Gorgoroth/770>. Acesso em: 20 ago. 2015.


[48] Pseudônimo Kanwulf ou Ash, fundador da banda Nargaroth. Cf. ENCYCLOPAEDIA METALLUM. Nargaroth. Apresenta informações sobre bandas de Heavy Metal. 2015. Disponível em: <http://www.metal-archives.com/bands/Nargaroth/961>. Acesso em: 20 ago. 2015.


[49] Durante os anos noventa intitulava-se Count Grishnackh, fundador da banda Burzum. Cf. ENCYCLOPAEDIA METALLUM. Burzum. Apresenta informações sobre bandas de Heavy Metal. 2015. Disponível em: <http://www.metal-archives.com/bands/Burzum/88>. Acesso em: 20 ago. 2015.


[50] Pseudônimo Frost, integrante da banda Satyricon, 1349, Zyklon-B, Ov Hell e outras. Cf. ENCYCLOPAEDIA METALLUM. Satyricon Apresenta informações sobre bandas de Heavy Metal. 2015. Disponível em: <http://www.metal-archives.com/bands/Satyricon/341>. Acesso em: 20 ago. 2015.


[51] Pseudônimo Quorthon, fundador da banda Bathory, falecido em junho de 2004. Cf. ENCYCLOPAEDIA METALLUM. Satyricon Apresenta informações sobre bandas de Heavy Metal. 2015. Disponível em: <http://www.metal-archives.com/bands/Satyricon/341>. Acesso em: 20 ago. 2015.


[52] Pseudônimo Antichrist, integrante do Sarcófago e Sepultura até o ano 2000. Cf. ENCYCLOPAEDIA METALLUM. Sarcófago. Apresenta informações sobre bandas de Heavy Metal. 2015. Disponível em: <http://www.metal-archives.com/bands/Sarc%C3%B3fago/2061>. Acesso em: 21 ago. 2015.


[53] Pseudônimo Tom Warrior, fundador do Hellhamer que tornou-se na década de 80, o Celtic Frost. Cf. ENCYCLOPAEDIA METALLUM. Celtic Frost. Apresenta informações sobre bandas de Heavy Metal. 2015. Disponível em: <http://www.metal-archives.com/bands/Celtic_Frost/269>. Acesso em: 21 ago. 2015.


[54] “Pintura cadavérica” (tradução livre). É uma modalidade de pintura facial inaugurada no Black Metal pela banda Mayhem que diversificou-se e tornou-se traço característico do movimento Black Metal. Cf. UNTIL the light takes us. Direção: Aaron Aites; Audrey Ewel. Produção: Aaron Aites; Audrey Ewel; Tyler Brodie; Gill Holland; Frederick Howard. Estados Unidos da América: Factory 25, 2010. 1 DVD.


[55] KALIS, Quentin. Black Metal: a brief guide. Chronicles of Chaos. Revista eletrônica que publica artigos sobre o movimento Black Metal. 2004. Disponível em: <http://www.chroniclesofchaos.com/articles.aspx?id=6-668>. Acesso em: 08 abr. 2015.


[56] CAMPOY, L. C. O caminho da mão esquerda: o mal do Black Metal. 2008, 44 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Porto Seguro, 2008.


[57] RUÍDO das minas. Direção: Filipe Sartoreto. Produção: Filipe Sartoreto; Gracielle Fonseca; Rafael Sette-Câmara. Belo Horizonte: UFMG, 2009. 1 DVD.

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